quinta-feira, 28 de abril de 2011

A poção mágica

Vende-se felicidade. Sim, está nas lojas por aí. Estampada nas portas em grandes cartazes. Travestida de carro zero, de jóia rara, de vestido Armani, do último ultra, mega celular. Facilmente encontra-se toda essa felicidade ao seu dispor. Por uns bons trocados o mercado garante que você será, momentaneamente, feliz com todos esses ítens, ainda que não sejam de verdade. Afinal de contas, verdade agora é relativa. Passou a depender do ponto de vista. O tempo é o novo aliado da alegria. Quanto mais rápido eu te fizer feliz é o que importa. Cremes garantem uma pele nova em vinte dias, shampoos restabelecem os cabelos em segundos (esses bateram o record do tempo), e até a cor da pele muda-se em poucas horas.
Spas garantem que em quinze dias você será uma nova pessoa; completamente diferente daquela que você gastou quarenta anos pra se tornar. Remédios milagrosos devolvem todos os perdidos: o sono, o cansaço, a saúde, a libido.
Fidelidade virou palavrão. Foi abolida do dicionário. Deu lugar à troca imediata. Deu defeito? Troque. Vale para celulares, computadores e pessoas.
Não perca tempo, as vantagens são tentadoras, troque logo de operadora, de provedor, de banco. Aproveite e troque a secretária, troque o marido, terceirize os filhos, terceirize os pais. Tudo dividido em n vezes e a perder de vista.
Abraços e beijos são cada dia mais virtuais. Promessas e enganos cada dia mais reais. Tão fácil e convidativo ser medíocre e fútil. Novos comportamentos disfarçam velhos tormentos.
Vende-se felicidade. Sim, vende-se por toda parte. E eu também entrei na fila. Olhei, provei, necessitei instantaneamente e comprei. Preço bom, condições ótimas. Sai da loja feliz e saltitante com as mãos cheias de sacolas quase vazias.
Foi como ter tomado um jarro de uma poção mágica. Nem pensei em posologia, passei batido na bula. Me esbaldei. Bebi o suficiente para um bom tempo de satisfação, não fossem os efeitos colaterais.
Doeu tudo. A falta de juízo me causou uma enorme dor de barriga, a culpa me trouxe uma enxaqueca do cão e a conta, essa tá doendo até hoje.

Leila Rodrigues

domingo, 24 de abril de 2011

Promessas

Promessas...

Quem nunca fez uma, que atire a primeira pedra
Quem nunca acreditou numa, que se atire
Quem nunca esperou por uma, que tire a pedra
Quem nunca deveu uma, que atire na pedra
Quem nunca cumpriu uma, que se retire
Quem nunca recebeu uma, que recolha a pedra

Promessas...

Que salvam
Que condenam
Que amarram
Que comprometem

Promessas...

Que um dia eu quis
Que um dia eu fiz
Num outro acreditei
Cansei

Leila Rodrigues

domingo, 17 de abril de 2011

Continuidade

Parou na janela e olhou lá fora. Em segundos, um filme passou-lhe na cabeça. Lembrou-se dos dois escolhendo a casa, da mudança, das eternas reformas que fizeram. Sempre rodeadas de sorriso e amparadas em muito esforço. Pegou seus discos de vinil já separados na estante e saiu.
Buscou uma resposta para a sua mais recente dúvida, por que será que todo fim é ruim? Constatou que fim bonito só em filme.
Chegou na casa da mãe, naquele mesmo quarto onde cresceu, onde viu escondidas as primeiras fotos de mulher nua, onde levou a Sueli para o primeiro "amasso". A mesma mesinha, o mesmo Santo desbotado na parede. O tempo passa, tudo passa; menos casa de mãe. Parecem prontas para o retorno de quem não deu certo. Plano B de todos nós? Ou seria prevenção maternal pra qualquer anormalidade? Bom, fosse o que fosse o quarto estava ali, a sua espera e ele teria que passar uns dias nele até decidir pra onde iria.
Abriu seus e-mails e tinha um monte de mensagens. Todos dando uma força para o recomeço, a nova jornada. Isso mais incomodou do que confortou. Não gostava dessa fragilidade que a separação impunha. Começar de novo, começar o quê? Para quê? Na cabeça dele não havia nada a ser começado, muito pelo contrário, havia muito ainda a ser terminado, encerrado de vez.
Hora de terminar com aquela briga inútil que todos os separados travam consigo mesmo, tentando achar o culpado pelo fim de uma coisa que nem devia ter começado.
Hora de parar de achar que o separado é um doente, um fracassado ou um incompetente que precisa desesperadamente da ajuda de todos.
Hora de parar de querer substituir uma pessoa por outra pra ver se fica tudo resolvido, como se pessoas fossem panelas de pressão, trocáveis, substituíveis.
Hora de viver com as sobras e fazer delas um bom jantar. A sobra dos discos, dos livros, dos móveis, das taças, dos amigos, do ativo imobilizado pelo fim.
Hora de usufruir o tempo que sobrou daquilo que se faziam juntos e que agora sozinho, ficou tempo demais.
Hora de ser mais filho, mais pai, mais irmão, mais amigo. Hora de ser mais de mim do que de quem eu tentei ser e nunca consegui.
Cada um vai seguir seu rumo. E esses rumos por si, vão cuidar pra não se cruzarem mais. Naturalmente buscarão direções opostas que os permitam sobreviver, provar pra si mesmos que existe vida após um relacionamento. E na paralela disso tudo, simplesmente dar continuidade em suas vidas.

Leila Rodrigues

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Sereno

“Sereno” é aquela pessoa que nos lembra às seis da tarde. Não importa o quão ardente foi o dia, nem quão gelada será à noite. O entardecer continua ali, sereno, devagar.
Nunca vi ninguém dizer que o entardecer passou voando. A pessoa serena também não. Parece que já nasceram Phd em administração do tempo. E quando estão atrasados, te contam com tamanha tranquilidade que chegamos a achar que é mentira. Dizem por aí que  "Sereno", pra morrer de repente, vai gastar cinco dias.
“Sereno” é aquela pessoa que não te interrompe pra falar que ele também dormiu mal. Alias, ele nunca nos interrompe. Essa é a grande diferença! O “Sereno” faz com que nos sintamos importantes. Ele pára de ouvir o barulho dos carros, o celular tocando, a ambulância apitando, para nos dar atenção. Quem mais faz isso por nós?
O único problema é que amamos e odiamos o “Sereno” simultaneamente.
Amamos quando ele é um amigo, odiamos quando ele é o motorista da frente. Amamos quando nos dá atenção, mas somos impacientes quando ele quer a nossa atenção. Que paradoxo! É que tendemos a ter raiva de quem não tem o nosso ritmo. Como se todos neste mundo tivessem um ritmo só?!
Sempre zen, marcha lenta, mosca morta, manivela; ainda que, de péssimo gosto, esses nomes não os ofende. Essas pessoas escolheram ser assim e não têm vergonha de si mesmos. Demoram pra entender a piada, mas sabem pelo olhar quando não estamos bem. São extremamente esquecidos do que se passou ontem, mas completamente atentos ao que acontece agora. Vivem e absorvem cada segundo, convictos de que tudo que precisamos para viver é o agora e nada mais.
 

A todas aquelas pessoas que tem o dom de nos tranqüilizar, pela sua simples presença.

Leila Rodrigues

sábado, 9 de abril de 2011

A luta

Porquê dentro de mim reside esta luta insana? Porque entre eu e eu travamos este eterno confronto?
De um lado meu corpo cansado pede socorro, de outro, minha mente atordoada insiste em continuar. Planeja, calcula, relembra, refaz, manipula, simula e insiste em não parar.
Como um filme em alta rotação, me passa na mente todos os filmes que vivi,  alguns que nunca vivi e os que eu penso que ainda viverei. Tudo num só instante. Tudo num só segundo. 
O confronto entre eu, eu mesmo e as Irenes que vivem em mim, me desintegra por completo.
Meu lado insano vem trazendo o riso, meu lado exato quer protocolar.
Parte de mim é fogão de lenha, estrada de chão, som de cigarra.
Outra parte é sinal de trânsito, engarrafamento de compromisso.
Parte de mim tem hora marcada, fila de espera, senha de acesso. 
Outra parte perdeu o lenço, o documento; caiu na estrada.
Parte de mim é equação, outra parte refrão. 
Parte de mim é personagem, outra parte confissão. 
Parte de mim é cimento, outra parte pensamento.
Desintegrado de minhas partes não sou parte de nada. 
Sou um monte de pedaços, um aglomerado de intenções que atua isoladamente em pontuadas situações. 
Minhas raízes se enterram em busca de um chão, minhas folhas seguem o vento a procura de emoção. 
E eu, pobre tronco, resido na esquina eqüidistante desses dois extremos. 
Alguém pára esse trem que eu preciso descer. 
Descer e caminhar meu caminho, ouvir o som da minha fala, entender o ritmo dos meus passos. 
Tomar de volta a propriedade de mim mesmo. 
Sou tantos, sou nenhum. 
Sou dúvida, sou resposta. 
Sou mentor, sou aprendiz.


Dedicado às Dudas, Júlias e Marcelas. Meninas de verdade, que têm a coragem e a sensatez de se mostrarem "não inteiras", sem medo do que vem depois.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O terceiro elemento

Havia seis meses que eles moravam juntos. Passados os problemas de logística comuns, tudo estava entrando nos eixos.
Ela dentista, rata de cidade, mais urbana impossível, nascida, crescida e adestrada em apartamento. Adorava viver na vertical, ver a cidade de cima. Flores, só de plástico; animal, só na tela do computador, nem de bicho de pelúcia gostava. Cresceu certa de que, do mosquito ao elefante, todo bicho é um inimigo em potencial. Tinha alergia até de quem gostasse de bicho, tamanha a sua dificuldade com os serezinhos.
Ele professor, nascido, criado e crescido com boa parte da fauna brasileira, cá no interior de Minas, naquela casa onde tinha quase tudo. Porco, pato, galinha, bode, papagaio, muitos cachorros e dois gatos. Sem falar a roça do avô que tinha tudo isso mais cavalo, vaca, sapos e muitos passarinhos.
Entra na casa um terceiro elemento, uma cachorra. Não! Isso que você pensou é outro bicho, estou falando de cachorra mesmo, fêmea do cachorro, bichinho, quatro patas... Uma fêmea Golden Retriever, investimento altíssimo para os bolsos do jovem casal.
Pra ele, a rotina acabara. Bastava mexer na fechadura da porta, pra cadelinha vir correndo pular nos braços dele e lambe-lo todo. Trazia o chinelo, fazia festa e depois ainda o acompanhava tranquila e silenciosamente durante o jornal e o futebol. Sabia que ela nunca pediu o controle remoto? Ela não perguntava como foi o dia dele e jamais queria discutir a relação. Ele chegava a achar que aquela cachorra era uma quase gente!!!
Para ela, a tortura só estava começando.  A casa impregnada de um cheiro muito estranho, que lhe causava espirros contínuos. Chinelo, meia, guarda-chuva e demais itens que tocasse o chão, não saia ileso, ela comia tudo que via pela frente. Além daquele rabo imenso que indecorosamente roçava-lhe as pernas de vez em quando. O bicho é sem noção gente! Deita no sofá, sobe na cama, rola no tapete e ainda é tratada como uma rainha. Tira todas as roupas do varal, mama as caixinhas de creme de leite, come as revistas e jornais que vê pela frente. ! Sem falar das necessidades fisiológicas, que é melhor não mencionar. Aquilo era o capeta disfarçado de animal.
Foram seis meses de rusga entre as duas. Até que, uma noite, sozinhas em casa, se acomodaram no mesmo sofá. Cada uma numa ponta, que é pra não ter problema.
Uma rosnou, a outra tossiu; a uma tornou a rosnar, a outra mandou calar. A uma achou que era um convite, chegou e lambeu; a outra arrepiou de medo e gritou. A uma continuou achando que era festa e se aconchegou, a outra para evitar um infarto, se aquietou.
E assim passaram sua primeira noite, juntinhas no sofá, até o dia amanhecer.
Hoje elas são amigas; confidentes. Vão juntas pra todo lugar; unha e carne, como se diz por aqui. Compras, shopping, viagens, fazem tudo juntas... E ainda dividem o único macho da casa numa boa, sem ciúmes, sem inveja.

Leila Rodrigues

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ela, por ela mesma

Folheou a revista. Saltavam-lhe peitos, bundas e sorrisos por toda parte. Odiou todas elas. Sempre perfeitas,  sorridentes, disponíveis e prontas para o abate. Se antes, era vale-quanto-pesa, hoje é vale-quanto-mostra. No meio de melancias, pêras e melões faltava-lhe frutas.
Ate que ponto as pessoas saem de si para dar vida a um fotoshop de si mesmas? Caricaturas do bem com divulgação autorizada. Diante de tudo isso ela se perguntava se ainda haveria espaço na cabeça das pessoas, mais precisamente na cabeça das próprias mulheres, para as mulheres reais. Preferia o seu presente imperfeito ao pretérito perfeito das sujeitas indeterminadas de hoje em dia.
Olhou para os lados e por um instante se sentiu fora de foco. Se olhou no espelho e riu daquilo  tudo. Gostou mais de si do que de todas aquelas. Não tinha tempo para tantos detalhes, nunca se sentiu confortável embrulhada pra presente. Estava claro que gostava de si mesma. Gostava do corpo que tinha, das suas proporções, das suas polegadas. Sabia que o corpo era apenas parte da brincadeira. O resto ela guardava consigo, esse sim era o grande segredo, o melhor da brincadeira.
 Naquela altura da sua vida não pensava em diversidade, estava feliz com aquele homem que ela tão bem conhecia o cheiro, o jeito, o gesto. Gostava de ser dele e gostava de sentir a falta dele. Gostava do tempo e do espaço dos dois juntos. Estava feliz com a sua escolha de tantos anos atrás. Lembrou das mãos quentes, do abraço grande, da intenção de menino quando quer fazer arte.
Soltou os cabelos, sorriu para o espelho. Tomou um banho de rainha; demorado, acariciado e sentido. Vestiu-se de bem pouco, era só o que precisava. Deixou pra trás as medidas, as feridas e tudo mais que a receita pedia. 
Caminhou sozinha em direção a ele. Seu olhar tinha riso, seu riso tinha desejo. 
Sabia que aquele era o seu momento e levava consigo a essência de suas vontades para usufruirem juntos.
Naquela noite ela sorveu, soltou, viveu e se deu. Deu para si o presente de se gostar, de se entregar. Não lhe interessou as notas, as faltas, as pautas. Sorriu, gritou, gargalhou, se fartou e se deixou aproveitar cada minuto, cada detalhe.
Chegou no fim do fim e se jogou por lá. Virou pro canto e dormiu. Exausta de feliz, exausta de verdades.

Existirá algo mais encantador que o desejo puro e simples de uma mulher?

Leila Rodrigues