Tudo começou com uma
pneumonia que ele teve ainda jovem. Eles mal tinham acabado de se casar. Ela
assustada quis cuidar dele. Era a primeira vez que cuidava de alguém. Não
poupou esforços. Por recomendação médica ela cozinhou as maçãs até ficarem bem
macias e perfumou-as com uma generosa pitada de canela. Ele, acamado e sem fome
se recusava a comer. E ela então se ofereceu para comerem a dois. Comeram
vagarosamente enquanto conversavam. Conversavam, comiam e faziam os planos. Os
filhos, uma casa, um emprego melhor. Sem se dar conta ele comeu a maçã
prescrita pelo médico.
No dia seguinte ela
veio de novo com a maçã, e no outro e no outro também. Até ele se curar por
completo. A doença se foi e o ritual da maçã ficou. Toda noite ela servia duas
porções de maçã com canela e eles comiam juntos. Enquanto comiam falavam do
dia, falavam dos filhos, falavam de si. E dormiam como o cotidiano permitia.
Houve tempos em que a maçã foi comida com um dos filhos no colo, ou senão com
dois. Houve noites em que a maçã foi comida em absoluto silêncio e ainda houve
outras noites em que cada mordida carregava um olhar e um sorriso perverso de
quem queria mais que a maçã. Doces e quentes noites!
No inverno a maçã
era comida quentinha. A fumaça perfumada recendia pela casa e esquentava o
ambiente. No verão, a maçã era servida bem gelada, na varanda para aproveitar a fresca da noite.
Os anos se passaram.
Quando ele viajou para Recife a trabalho, ela sentava sozinha, na mesma hora de
sempre e saboreava a maçã dos dois. Quando ela operou, ele preparava a maçã e a
servia toda noite. Quando o dinheiro ficou pouco, ele descobriu no sacolão as
sobras de maçãs mais baratas. Quando ele subiu de posto, encomendou maçãs
argentinas. E quando ela resolveu estudar mais um pouco, ele a esperava com as
maçãs antes de dormir.
Os filhos cresceram.
Ele perdeu os cabelos, ela ganhou alguns quilos. Eles mudaram de casa, de
carro, de cidade, de trabalho e de vasilhas de servir maçãs. Veio o microondas,
facilitou o preparo. Vieram as doenças, dificultaram os momentos. Ela se foi. E
ele foi morar com o filho mais velho. A memória pouco funciona. Ele toda noite
descasca vagarosamente uma maçã, salpica canela, aperta aquela tecla do
micro-ondas que ele mal enxerga, aguarda o apito, retira do forno e se senta em
frente à janela para saborear sua maçã. Certo de que em algum lugar, sua amada
está fazendo o mesmo.
Leila Rodrigues
Publicado no Jornal Agora Divinópolis em 31/03/2015
Imagem do blog Panelinha
(uma delícia de blog)