quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A escolha




Levada pelo pensamento, como o vento leva a chuva, ela caminhava de volta para casa. Sempre à pressa, sempre o tempo. Contrariando o cotidiano, desta vez não era a janta que habitava seus pensamentos, nem o dever das crianças, nem o vazamento da pia. Quem a acompanhava pelo caminho era seu devaneio mais recente, uma nova oportunidade. Sim, uma oportunidade, essa dama encantada que habita nossos horizontes, havia beijado a sua face. Àquela altura de sua vida, uma oportunidade de começar de novo, de um jeito novo, em um novo lugar! Só de pensar nesta possibilidade, ela já se sentia embalada por este novo mundo. Ria sozinha, não conseguia parar de pensar, fazia mil planos na cabeça, sentia frio na barriga, tudo isso movida por esta janela que se abrira em sua vida.
A dúvida assolava-lhe a mente, de um lado a velha e costumeira vidinha de sempre, família, filhos, trabalho. Tudo tão encaixado para caber na agenda e na vida que até os problemas já lhe eram previsíveis. Não fosse a mesmice dos dias, não fosse a falta de emoção, diria que estava tudo tão perfeito em sua vida, tão arranjado, para quê mexer?
Do outro lado, feito criança na roda gigante, a oportunidade lhe convidava a largar tudo isso e experimentar começar tudo de novo. Quantas vezes ela não desejou, desesperadamente, uma oportunidade de recomeço? Quantas vezes, no auge da dificuldade e da dor, ela não quis uma chance dessa? E agora, que ela menos esperava, que ela já se havia acostumado com o que tinha, surge este pacote surpresa para dividir seu coração ao meio?!
Chegara a perder a fome, tamanha a dúvida. Silenciosamente, cultivava aquela dor de quem precisa decidir um caminho a seguir. A dor não era escolher o caminho e sim, deixar um caminho. O que doía não era o caminho a ser escolhido, mas o que fosse deixado para trás, seja ele qual fosse. Descobriu que estava mais presa aos seus do que imaginava.
Resolveu colocar tudo na balança. E se surpreendeu!  Pessoas pesam mais que propostas, saudades medem mais que a distância, liberdade pesa mais que comodidade e felicidade nem sempre combina com facilidade.
Rezou, pediu, pensou, calculou, chorou, sorriu e finalmente decidiu. Optou por ser feliz, achou este, o caminho mais adequado!


Leila Rodrigues 
publicado no Jornal Agora - Divinópolis MG em 25/10/2011

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Filhos do mesmo pai




Dois homens caminham
Um cheio de si
O outro cheio de outros
Um bem sucedido
O outro bem vivido
Um dono da verdade
O outro sempre em busca...

Dois homens seguem seus caminhos
Um todo precavido
O outro todo ouvido
Um vai se dar bem
O outro vai apenas se dar

Talvez eles se cruzem por aí
Filhos de um mesmo pai
Amamentados por  tantas mães
Um volta cheio de nada
E o outro cheio de vida
Um chega envolto  de brilho
O outro envolto de luz

Leila Rodrigues

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Quietude





Não há nada a fazer
A não ser esperar
Não há nada a executar
Entre tanto a se fazer
Pois é hora de se aquietar

O momento da tormenta
Não é de execução
É apenas de cautela
Aquietar mente, corpo e  coração

Como dói essa espera!
Como dói essa aflição!

Hora de entrega
À minha condição pequenina
Hora de colo
Hora de lucidez
Hora de não falar
Hora de ouvir o barulho do vento
Deixar que o tempo faça a tormenta passar

domingo, 9 de outubro de 2011

Intenso





Quero estar na sua história, como o sal está no mar.
Eu não quero ser presente, nem passado, nem futuro.
Quero ser atemporal
Quero ser conteúdo, matéria, movimento
Eu não quero ser o vento
Por mais frescor que lhe traga
Pois que quero impregnar-te
Do meu gosto e do meu toque
E fazer seu pensamento
Me querer a cada instante
Até me tornar constante!



Leila Rodrigues

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A busca

Encosto meus sonhos no canto da sala, guardo na gaveta os meus poemas e saio por a procura de mim. A procura de outro de mim. Talvez a procura de outra pessoa que possa habitar em mim e me fazer melhor.
Perder alguém não é simplesmente perder alguém e ponto final. Porque se perde o ponto. E ao perdemos o ponto, nos perdemos de nós mesmos. Muitas vezes nos perdemos muito mais de nós mesmos do que do outro que se foi.
Perdi você. E junto com você perdi a hora, perdi o sorriso, perdi o jeito... Perdi o caminho de volta para mim.
Andei, andei muito, perambulei por aí. Parei em esquinas tão longínquas, cruzei com pessoas tão diversas. Experimentei tudo que me prometia algum minuto de alívio para a minha dor. Tudo tudo. E nada! Toquei pessoas, beijei suas bocas, abracei seus corpos na ilusão de que fosse você. Bebi todas as fórmulas que prometiam me tirar a lucidez ainda que por alguns segundos, mas nada adiantou, quando eu acordava a dor acordava junto comigo novamente. E enquanto eu dormia, sabia que ela me vigiava incessantemente.
Vencido, prometi a mim mesmo que dali para frente você, dor interminável, seria a minha companheira. Passei a dialogar com você o tempo todo. Como um louco eu andava pela rua ao lado do meu inimigo invisível, visivelmente louco. Comecei a te mostrar o mundo, a te fazer perguntas e a esperar respostas. E as respostas eram sempre as mesmas. Um silêncio absoluto de quem já se havia ido há muito tempo. Nenhum eco, nenhum sinal, apenas aquele buraco imenso de silêncio me mostrando que a sua ida era real. E era para sempre.
Volto para casa. Aquela mesma casa empoeirada que eu deixei para ir em busca de nós dois. De mim ou de você. Àquela altura, qualquer um de nós dois que eu achasse estava bom para mim. Eu já havia perdido tudo mesmo. Voltei sem você e quase completamente sem mim. Sobrara-me tão pouco! Talvez apenas forças para voltar. Nada mais!
Ao entrar em casa, percebo meus sonhos no mesmo lugar. Meus pertences inertes à espera de mim para voltarem à vida. Minha velha xícara, meus chinelos gastos. Meu vaso de flor à beira da morte me pedindo um copo d'água, meu último brioche endurecido que eu não consegui comer. Meu cachorro cabisbaixo, magricelo e faminto ainda veio me cheirar. Olhei para aquilo tudo e comecei a chorar. Perdi você e eles me perderam.
Corri no meu quarto e abri a gaveta. Lá estavam eles, meus poemas empoeirados. Parados no tempo à espera de mim. Inertes, calados. Talvez tão doloridos quanto eu. Chorei molhando os papéis, deformando as palavras fui relendo cada um. Com as mãos trêmulas, pego de novo a caneta. Não sei por onde começar. Faltam-me palavras. Começo com uma qualquer...
Andei tão longe para me encontrar tão perto.

Leila Rodrigues