domingo, 28 de julho de 2013

E ela nem fez curso superior




O chão da casa tinha tábuas largas, algumas soltas que balançavam ao pisar. E eu, toda vez que atravessava do quarto para o banheiro frio, me sentia pisando em um passado que eu jamais saberia explicar. Ainda assim eu gostava de ficar naquela casa. Só quem viveu na casa da avó consegue entender isso.

A minha avó usava umas palavras diferentes, que só ela sabia dizer. Locomovia-se com dificuldade, parecia sentir dor, mas conseguia sorrir mesmo assim, sempre feliz e agradecida por estar entre nós. A casa era grande, cheia de ecos, tinha cheiro de jasmim e fotos na parede. A minha vó gostava de reunir todos e contar casos. Sempre reais, por mais absurdos que fossem.

Toda vez que alguém começa dizendo "na minha época", temos a sensação de um passado tão distante que visualizamos uma foto em preto e branco, amarelada pelo tempo, sem valor algum para os dias de hoje. A minha vó gostava de fotos e achava incrível ver-se no papel. Porém naquele dia ela não começou assim, talvez por isso tenha sido tão especial.

- Toda vez que vejo vocês, meus netos, eu enxergo um futuro brilhante para todos. Filhos, carreira, realização, felicidade. Um futuro que eu, com toda certeza não participarei. Mas não participar não me entristece. Participei até aqui e de amanhã para frente pode ser que eu vire apenas uma imagem no papel. E quando eu me transformar em imagem no papel, ou em apenas um segundo de nostalgia no coração de vocês, me visitem de vez em quando. Faça-me uma visita breve, alguns segundos apenas. Visitem-me para reforçar seus valores, para fortalecerem seus princípios ou para simplesmente enxergarem o passado com o olhar do presente.  E logo em seguida me deixem e sigam as suas vidas, porque é no presente que construímos o nosso futuro. Corram e mudem o que ainda puder ser mudado.

Ela mal terminou e foi se levantando da cadeira. Pediu a minha ajuda para se reerguer e trêmula caminhou sozinha até o quarto. Olhei para o meu irmão que cochilava na cadeira e pensei na aula que ele acabara de perder. Minha irmã chorava em silêncio na cadeira ao lado. Só se ouvia o relógio de parede que, de tão antigo já era um membro da família. Não sei precisar quanto tempo fiquei ali parado, vendo sumir aquela pequenina que nunca fez curso superior. Suas palavras me acompanham desde então.
Vovó faleceu cinco dias depois daquela noite, mas eu a visito até hoje. 



Leila Rodrigues

Publicado no Jornal Agora Divinópolis em 09/07/2013
Imagem da Internet
 

11 comentários:

  1. Leila, lindona!
    Retorno com toda a calma ainda nesta semana quando eu postar novamente, assim otimizo melhor as leituras.
    Teus textos merecem atenção e todo carinho :)
    Beijos!

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  2. Leila, quanta sensibilidade no teu texto. É possível ouvir o ranger do assoalho, o cheiro de jasmim.
    Sorrir mesmo sentindo dor... uma avó que sem dúvida ensinou o que não se aprende em curso superior.
    Beijo

    ladodeforadocoracao.blogspot.com

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  3. Maravilha!!Adorei ver esse carinho, essas lembranças ,as lições passadas por ela, que não precisou de nada, nem de curso superior pra ser sábia! beijos,chica

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  4. Emocionante! Não tive o prazer de conhecer minhas vovós, tinha uma tia, irmã de minha mãe, que já era velhinha, e que eu idealizava como vovó ,tamanha era minha vontade de ter vovó. Como se diz... vovó é mãe duas vezes. Ser mãe já é divino, imagina duas vezes. Beijossss

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  5. Leila eu te entendo muito bem, porque já senti essa sensação, essa alegria de ter minha avó , parece lendo minha vida, minha história. Fiquei aqui pensando, lembrando, e quantas saudades de minha avó eu senti. Até parece que ouço as badaladas do relógio antigo de parede que me assustava tanto durante as madrugada quando ia passar férias por lá, a cadeira de balanço de eu tanto gostava. São tantas recordações, só quem teve uma avó sabe quanto a gente aprende com ela.

    Adorei a sensibilidade que escreveu sua crônica.

    Deixo um beijo e uma ótima noite!

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  6. Leila querida!
    Retornei...
    nossa! Agora li com toda tranquilidade... que texto minha cara!

    Fiquei pensando um monte de coisas sobre a vida, o passado, o futuro e principalmente, a eternidade. Pois a Eternidade, essa mesma com letra maiúscula, é um transcender do tempo, espaço e da pessoa. Porque há muitas pessoas além-tempo e espaço, aquelas que nos tocam o afeto, que se fazem parte de nós para sermos parte de outros.

    Beijos muitos!

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  7. Boa tarde, Leila. Emocionante o texto.
    A sabedoria dos idosos não precisa mesmo de formação superior, eles trazem em si toda a bagagem de aprendizado de uma vida inteira, e com tamanha simplicidade passam adiante.
    Sábios serão, os que sempre os visitarem e fizerem de suas palavras, seu manual de vida.
    Parabéns e beijo grande.
    Excelente semana de paz!

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  8. Algumas coisas nascem com a gente....
    Beijo Lisette.

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  9. Lindo Leila.

    A erudição depende de conhecimento , de formação específica, ao passo que a sabedoria vem do coração, do discernimento, da intuição e esta sabedoria é o mais precioso legado que nossos avós podem nos oferecer, e nem precisa cursar uma faculdade.

    A sabedoria fica para sempre na memória
    Adorei.
    Beijos.

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  10. que lindo!!! Minha avó também se despediu de nós. Disse para as minhas filhas, que sempre estaria com elas. e eu entendi que ela estava pronta para ir...

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  11. Palavras que comovem, povoam a mente da gente de sentimentos, num encontro silencioso com aqueles que se foram, deixando aqui apenas seu retrato e seu cheiro de jasmim... Mas que jamais serão esquecidos, ao contrário, serão para sempre lembrados por sua sabedoria. Sabedoria essa que independe de diploma, vale-se pura e simplesmente de vida vivida.

    Muito bom estar aqui, sentindo a força de suas palavras! Beijos.

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