domingo, 5 de maio de 2019

Tempo doce



Eu pensava em árvores; em bichos, estrelas e afins. Não vou esconder, eu tinha vontade de ser um bicho e dormir nos galhos das árvores observando as estrelas. Aquele sim era o meu lugar. Você vai achar que eu era louco e eu serei obrigado a concordar com você. Esse era meu mundo,  no inverno de 1988. Eu tinha apenas 16 anos e tudo que eu queria era fazer dezoito anos para tirar a minha carteira de motorista e cair no mundo na Rural Willis 75 do meu avô.  Ah, eu também queria prestar vestibular para veterinária. 
E ela já falava inglês, francês e português muito bem. Ela tinha os cabelos pintados de uma cor esquisita que anos depois eu descobri que se chamava acaju. Ela queria ir morar em Chicago e eu nem sabia para que lado ficava Chicago, só sabia que era nos USA.
Ela tinha encantos e eu tinha um jeito tímido de me encantar com tudo que viesse dela. Ela tinha os cabelos longos e eu tinha espinhas no rosto. Ela tinha uma cintura que prendia por completo minha atenção e eu tinha a mania de perder a fala toda vez que ela me fazia uma pergunta. Ela sempre falava sério e eu nunca falava nada. Ela era a mulher dos meus sonhos e eu, apenas mais um dos seus 240 alunos do colégio Santo Agostinho. 
Eu poderia colocá-la num altar, só para apreciar sua inteligência, sua beleza, sua facilidade para falar de física quântica enquanto eu ainda não tinha conseguido compreender que toda força tem uma reação contrária na mesma intensidade. 
Eu ensaiava conversas que nunca aconteceram, carrega seus livros, perguntava alguma coisa inútil, mas nunca consegui dizer o quanto a achava linda, inteligente, maravilhosa e perfeita para ocupar o lugar dos meus sonhos. Ela me respondia tudo tão rapidamente que me travava ainda mais, ela sorria para mim de um jeito que eu me sentia o perfeito idiota. 
Um dia eu presenciei uma discussão dela com outro professor. Ela falava da nova Constituição com a mesma propriedade que eu falava da minha bicicleta. Foi neste dia que entendi a nossa distância e tudo se desfez. Tomei o meu primeiro porre, pus pra fora toda a bile que eu tinha no organismo  e só voltei ao colégio 3 dias depois. 
Ainda tenho vontade de saber se ela conheceu Chicago e quando vou à Belo Horizonte e sempre faço questão de passar na porta do velho e bom Colégio Santo Agostinho. 
Quem sabe ela não está por ali?

Leila Rodrigues

Imagem: https://www.e-konomista.pt/artigo/melhores-cidades-andar-bicicleta-portugal/
Publicado no Jornal Agora e no JC Arcos


Olá pessoal,

criada no meio de 3 irmãos e convivendo com 3 homens em casa, é uma diversão me passar por um “menino” de vez em quando. Juntando tudo que aprendi e aprendo com eles, surge esta crônica que é uma volta à adolescência dos anos 80. 
Um tempo doce e ingênuo que só podemos recordar.
Bom domingo! Grande abraço

Leila Rodrigues


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