Eu sempre deixava o
meu carro no estacionamento da Av. Brasil e caminhava a pé duas ou três quadras
até chegar ao meu trabalho. As árvores davam um aconchego, uma sombra gostosa e
uma ilusão de que eu estava rodeado de bons ares. E quando chegava o outono eu
tinha pena de pisar nas folhas secas. Eu achava injusto pisar naquelas mesmas
folhas que me agraciaram quando jovens. Nunca contei isso para ninguém, mas
muito provavelmente alguém deve ter visto um maluco se desviando das folhas em
plena Rua Coronel Bartolomeu. De todas as loucuras que eu cometi na vida, e
olha que eu cometi muitas, esta era a mais consciente e que me dava mais
prazer. E quando vinha o lixeiro e levava todas as folhas eu me despedia delas
e agradecia pelos dias de frescor.
Naquele outono a
minha tristeza era tamanha que eu sequei junto com as folhas. Não me sobrara
quase nada a não ser o Juvêncio meu vira-lata muito amado e minha casa.
Francesca se fora e Cazuza também. Francesca foi viver outros amores, Cazuza
foi cantar no céu. E eu andava cabisbaixo pelas ruas secas da cidade.
Faltava-me um rumo, mais que isso, uma razão. O ser humano precisa de razões,
nem que seja para perdê-las e eu não tinha nenhuma.
Ainda sem razão eu
peguei a estrada. Era sábado, ventava um pouco e não foi difícil reconhecer que
tudo ao meu redor era seco. Cheguei a pensar que o mundo estava compadecido das
minhas tristezas. Imaginei a chuva, a primavera e as folhas de volta. Assim que
eu fiz a curva da baixada, aquela onde eu e o Beto sempre parávamos para um
cigarro e uma prosa, ele apareceu na minha frente. Gigante, resplandecente como
o sol do Egito! Era o primeiro ipê da temporada. Levei um susto e freei na
hora. Encostei o carro e fiz questão de sentar bem debaixo daquela copa
dourada. Não sei precisar quanto tempo fiquei ali parado, contemplando o
colorido do momento. O ipê parecia afrontar a minha alma cinza com tanta cor.
Em volta tudo estava seco, eu inclusive. E ele insistia em resplandecer sereno.
Tive vontade de engolir suas flores, uma por uma. Quem sabe eu devolveria um
pouco de cor à minha alma? Quem sabe assim "colorido", Francesca me
amaria de novo? Que nada! A esta altura, Francesca e Cazuza eram folhas secas
que seguiam novas missões.
Tem gente que diz
que amarelo é cor de desespero. Eu não penso assim. Desde aquele ano, todo mês
de agosto eu me renovo com o colorido dos ipês. E toda vez que eu fico
"seco" eu ouço Cazuza e visto a minha camisa amarela.
Leila Rodrigues
Publicado no Jornal Agora Divinópolis em 16/09/2014
Imagem cedida pela amiga Sandra Soraggi (uma querida que
assim como eu, adora ipês)
"O ser humano precisa de razões, nem que seja para perdê-las e eu não tinha nenhuma."
ResponderExcluirÉ encantador ler você!
muahhhhhhhh, minha amiga linda!
Para mim, não há nada mais significante que nos encantarmos com a natureza que se descortina diariamente entre nós. Ipês, então são soberbamente belos!
ResponderExcluirAbraço.
Leila bom dia ! Acabei de ler um dos textos mais belos, também sou apaixonada pelos ipês, amo esta época do ano... a natureza abençoa nossos dias colorindo a vida que já é tão bela!
ResponderExcluirBjus primaveril
Clarice
Também sou apaixonada por Ipês...
ResponderExcluirFiquei encantada com seu texto!
Parabéns!
Que lindas razões você tem com o amarelecer do Ipê amarelo.
ResponderExcluirAmei a sua crônica como sempre deliciosa de se ler.
Bjs.
Boa tarde iluminada.
Oi Leila!
ResponderExcluirUma pessoa apaixonada como você pelas plantas a ponto de respeitar até a morte das suas folhas, só pode ter crescido no meio delas.
Aqui em casa, os Ipês brancos florescem primeiro, depois o amarelo e em seguida o roxo.
A cor amarela para muitos povos, como o americano, é a esperança na volta de desaparecidos, soldados na guerra...
Seu texto é perfeito!
Abraços e boa semana!
vitornani.blogspot.com
Olá, Leila.
ResponderExcluirA vida por vezes descolore e intenta nos descolorir. Mas a alma amadurecida nos embates do existir, sempre guarda um restinho de cor que ninguém pode roubar: Um pouco do verde esperança, um tanto de azul fé, uma poção de vermelho força e outras tantas pitadas de branco, amarelo, dourado, prata...
Um abração e uma boa semana.