sábado, 27 de junho de 2015

Virado à Paulista




O céu é cinza, o chão é cinza e os prédios são acinzentados. E eu acabo me misturando a esse jeito cinza de ser quando estou em São Paulo. Misturo-me e gosto. Curto o frio, a garoa e a pressa do Paulistano. Impossível não ter pressa em São Paulo. Aqui tudo é tão urgente, tão latente que me assusta. Às vezes tenho a impressão de que o Paulista vive em outra rotação.
Primeiro sinto medo. Um medo bobo, de quem está acostumado a ser reconhecido de longe e agora tem certeza absoluta de que não será reconhecido por ninguém. Anonimato absoluto. Depois o medo vai dando lugar a uma curiosidade enorme pela cidade e suas pessoas apressadas. Entrego-me fácil. Rapidamente descobrem que eu sou apenas um "passante" por aqui. Meu olhar curioso em 360º me condena e o meu desajeito ao atravessar as ruas também.
Relaxo. E deixo o improvável apoderar-se de mim. Aqui não sou nada mais que mais um. E como é leve ser apenas mais um! Ter a minha identidade misturada às demais e perder o peso de ser quem determinei que fosse.
De que vale meu sobrenome no meio de milhões de sobrenomes iguais ao meu? De que vale minha formação diante da multidão que se forma a cada dia? De que vale a minha educação se eu não posso dizer que sou a filha do Déco? Sinto-me nua, me sinto só. E terei de me garantir assim. Sem lenço e sem documento, provavelmente com o mesmo medo que Caetano sentiu quando chegou por aqui.
Aos poucos pego o jeito e acerto o passo. Já sei andar depressa. Já entendi a importância da bota, do casaco e do guarda-chuva. Aceito o pão com salame como tira-gosto e descubro que ninguém morre por ficar na fila duas ou três horas. Na fila sempre surge uma conversa aqui, outra ali. Descubro que o sujeito da frente é Cearense (óbvio) e o de trás é da Paraíba (óbvio de novo). Surge um assunto, conto que sou Mineira, o outro conta como chegou e ao longo da conversa fica claro para mim que o colorido desta cidade vem das pessoas e não se atém ao cinza de seus prédios. Cada Paulista tem a cor que deseja, que carrega em si. O Paulistano é apressado e workholic mas tem o coração abarrotado de história e de paixão pela cidade. Defende-a com unhas, dentes e coração. Ele é apenas mais um cidadão na selva de cimento a espera de alguém que ainda não tenha se acinzentado como a cidade chegar e deixá-lo entrar.
Quem sabe um dia ainda venho para ficar?

Leila Rodrigues

Publicado no Jornal Agora Divinópolis em 23/06/2015
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segunda-feira, 22 de junho de 2015

A Consulta





Doutor, eu já cortei o açúcar, o sal, a gordura, o álcool, a carne vermelha, o arroz, o glúten, a lactose e os amigos. O que mais eu vou ter que cortar? Sim, porque só me falta agora cortar os pulsos.

Ainda assim hei de vencer! Tomei algumas medidas que vão contribuir muito para esta etapa da minha vida. Já cortei a empregada (limpar a casa ajuda a fortalecer os músculos), cortei para sempre a padaria porque leite e pão hoje em dia são dois venenos, cortei o álcool até da limpeza para não ter perigo de recair e amanhã cedo vou cortar a TV porque esses programas culinários estão arruinando a minha meta! Doutor, por favor, me diz se em algum momento desse corte coletivo eu vou poder cortar o que realmente me interessa, a minha fome!

Eu preciso parar de ter fome Doutor! O problema é que a minha fome é diferente das demais. A minha fome é na cabeça! Eu penso em comida, eu medito com comida, eu tomo café da manhã pensando em qual será o cardápio do almoço. Fala para mim Doutor, é ou não é uma cabeça de gordo?

Doutor, da última vez que eu estive aqui, o Sr. Me pediu para cortar a farinha branca. Eu cortei a branca, a preta, a amarela, todas! Lá em casa farinha não entra mais. O problema é que eu continuo pesando aquele mesmo peso do mês passado, que eu não posso expor aqui, claro! Doutor eu sei que eu estou alterada. Meu marido já me disse isso, a minha mãe e as minhas amigas também! Mas eu tenho motivos. Uma pessoa que se alimenta de alface, clara de ovo, batata doce e água tem todos os precedentes para ficar alterada. Eu perdi o sabor!

Doutor eu sonho ser uma pessoa fit! Sabe aquelas que acordam cedo e malham pesado todos os dias? Pois bem, esse é meu sonho! Então eu acordo cedo todos os dias e coloco a minha roupa de academia, todo santo dia! Aí eu vou à padaria, ao supermercado, levar meu filho até a escola, enfim, eu passo o dia com o meu modelito fit que é para todo mundo pensar que eu sou realmente essa pessoa. Inclusive eu!

Eu sei que a minha gordura reside muito mais na minha cabeça que no meu abdômen. Afinal, pesar 70 Kg não deveria ser motivo para esse pânico todo. Em algum momento eu criei esta meta de emagrecer e agora não consigo sair dela. Por favor, Doutor, me receite algo para sair dessa onda maluca que eu entrei. Emagrecer não pode ser assim! Será que o Sr. não teria uma pílula? Isso! Um remedinho desses mágicos que devolva a minha magreza e consequentemente a minha felicidade?

O quê? Rivotril? Emagrece?

Leila Rodrigues
Publicado no Jornal Agora Divinópolis em 16/06/2015
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